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Relações Disfuncionais e o Triângulo Dramático de Karpman

  • Foto do escritor: Pedro Kunzler
    Pedro Kunzler
  • 28 de dez. de 2024
  • 3 min de leitura

Relações humanas carregam um potencial fascinante e, ao mesmo tempo, destrutivo. No cerne das interações disfuncionais, encontramos padrões que se repetem de forma quase ritualística, sustentados por um jogo inconsciente de poder, dependência e culpa. O Triângulo Dramático de Karpman, que identifica os papéis de Vítima, Salvador e Perseguidor, é uma ferramenta potente para descrever essas dinâmicas. Porém, enquanto o modelo em si oferece uma estrutura clara, é a psicanálise que nos conduz à profundidade necessária para compreender por que esses papéis são tão sedutores, por que nos aprisionam e por que, muitas vezes, repetimos essas relações ao longo da vida.


De minha perspectiva como psicanalista, vejo no Triângulo Dramático uma ilustração quase perfeita da compulsão à repetição descrita por Freud. As pessoas presas nesses papéis parecem recriar, de maneira inconsciente, cenas de suas histórias infantis, quando buscavam atenção, proteção ou controle em meio a dinâmicas familiares que não atendiam plenamente suas necessidades. A Vítima, por exemplo, não é apenas alguém desamparado; é alguém que encontra satisfação inconsciente em sua impotência, pois ela convoca o olhar do outro para si. Já o Salvador não ajuda simplesmente por altruísmo, mas porque encontra na dependência alheia um espelho para seu desejo de ser indispensável. E o Perseguidor, na ânsia de controlar ou punir, na verdade revela sua própria vulnerabilidade, projetando sua angústia em quem é mais frágil.


Esses papéis são mantidos por aquilo que Lacan chamaria de gozo, um prazer paradoxal que, embora traga sofrimento, é insistentemente buscado. A Vítima goza ao permanecer desamparada, pois isso reforça sua posição central no triângulo. O Salvador goza ao se sacrificar, pois isso confirma sua importância. E o Perseguidor goza ao culpar, pois isso o isenta de olhar para sua própria fragilidade. Esse circuito é mantido no plano do imaginário, onde os sujeitos estão presos em relações de espelho, tentando encontrar no outro uma solução para o vazio que, no fundo, é estrutural e intransponível.


A psicanálise nos ensina que a saída desse ciclo não está em mudar o comportamento ou simplesmente “escolher” outros papéis. Isso seria superficial e pouco eficaz, pois o verdadeiro conflito é interno, inconsciente. A questão fundamental, como sempre, é o desejo. Por que escolhemos inconscientemente essas dinâmicas? Que posição subjetiva sustentamos nesses papéis? O que ganhamos ao nos colocar como Vítima, Salvador ou Perseguidor? Essas perguntas são difíceis, e muitas vezes o sujeito prefere permanecer no triângulo do que encarar o desconforto de se responsabilizar por sua parte na repetição do sofrimento.


No consultório, é comum que essas dinâmicas surjam na relação analítica por meio da transferência. Um paciente em posição de Vítima pode esperar que o analista o salve, enquanto o analista pode sentir a tentação, consciente ou não, de assumir esse papel de Salvador. É preciso cuidado, porque ao alimentar esses papéis, perpetuamos a mesma dinâmica que o paciente busca superar. Aqui, a neutralidade do analista é essencial: não para rejeitar o paciente, mas para convidá-lo a reconhecer que a solução não está no outro, mas em si mesmo.


A ruptura com o Triângulo Dramático exige coragem. A Vítima deve abandonar a fantasia de que será salva e assumir a responsabilidade por sua vida. O Salvador precisa encarar que sua ajuda pode ser, na verdade, uma forma de controle e que, ao parar de salvar, pode sentir-se menos necessário. E o Perseguidor precisa lidar com sua própria agressividade e insegurança, reconhecendo que culpar o outro não resolve sua angústia interna. Essa ruptura, porém, não é fácil, pois implica renunciar ao gozo desses papéis e aceitar a falta que nos constitui enquanto sujeitos.


Como psicanalista, acredito que o verdadeiro trabalho é ajudar o sujeito a transitar do imaginário para o simbólico, reconhecendo que a falta não é algo a ser preenchido, mas integrado. Isso significa abandonar a busca por soluções mágicas no outro e assumir o desejo como algo que nos move, mas que nunca será completamente satisfeito. É nesse movimento que o sujeito pode finalmente escapar do Triângulo Dramático, não porque “resolveu” seus problemas, mas porque aceitou a incompletude como parte de sua existência.


As relações disfuncionais descritas por Karpman não são meramente problemas comportamentais; são manifestações de conflitos psíquicos profundos. A psicanálise nos lembra que não há atalhos para escapar dessas dinâmicas. O caminho é difícil, mas possível: olhar para dentro, reconhecer os próprios padrões, assumir a falta e, finalmente, construir relações mais autênticas e livres. Porque, no final das contas, é isso que buscamos – não ser salvos, não salvar, nem controlar, mas nos relacionarmos com o outro como sujeitos inteiros, conscientes de nossa incompletude e de nossa singularidade.

 
 
 

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