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Atenção Flutuante na Psicanálise: Técnica, Ética e Escuta do Inconsciente

  • Foto do escritor: Pedro Kunzler
    Pedro Kunzler
  • 3 de abr.
  • 3 min de leitura
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Hoje compartilho um artigo que escrevi em 2019 para a disciplina de Técnicas da Psicanálise, durante a graduação em Psicologia.


A clínica psicanalítica sustenta-se sobre uma prática de escuta singular, que se distingue de outras abordagens terapêuticas por sua abertura ao inconsciente, sua recusa à direção moralizante do discurso e sua aposta no equívoco como operador de verdade. Nesse contexto, o conceito de atenção flutuante, introduzido por Freud e aprofundado por Lacan, revela-se como um instrumento técnico e, ao mesmo tempo, como uma ética da escuta analítica.


Freud, em seu texto “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” (1912), propõe que o analista adote uma postura de escuta “sem privilegiar nada do que ouve” — ou seja, que renuncie ao controle consciente sobre o que parece mais importante ou evidente na fala do paciente. Essa escuta não seletiva, também chamada por Freud de gleichschwebende Aufmerksamkeit, corresponde a uma neutralidade ativa, onde o analista se abstém de intenções prévias, julgamentos ou expectativas. Assim como se espera que o analisando diga tudo o que lhe venha à mente (livre associação), ao analista cabe escutar com a mesma liberdade — flutuando com o discurso, e não se fixando em seus pontos mais óbvios.


Esse modo de escutar permite ao analista captar os fenômenos inconscientes que atravessam o discurso: lapsos, atos falhos, repetições, silêncios, ambiguidades. Um exemplo clínico pode ilustrar isso: ao dizer “ele pediu um martírio… digo, um martíni”, o paciente revela — sem o saber — um conteúdo latente sobre sua relação afetiva. O analista, em atenção flutuante, não corrige, não interpreta de imediato, mas registra esse equívoco como índice de um desejo inconsciente que poderá ser elaborado futuramente.


Lacan retoma e radicaliza essa noção ao articular a escuta analítica à estrutura da linguagem. Em seus “Escritos” e no “Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud”, ele propõe que o analista escute “com o inconsciente” e não com a consciência. Isso significa que o analista deve escutar o que escapa, o que ressoa entre os significantes, o que se desloca. A atenção flutuante, nesse sentido, não é uma postura passiva ou contemplativa, mas uma escuta implicada, que se mantém disponível ao que insiste como resto, como enigma ou como furo na cadeia significante.


Trata-se, portanto, de uma ética da escuta: o analista renuncia ao saber pronto, ao juízo antecipado, ao lugar de mestre. Ao invés disso, sustenta o desejo de saber do sujeito, permitindo que este próprio se escute, se surpreenda e se reconstrua a partir dos efeitos de sua fala. A atenção flutuante, longe de ser uma técnica mecânica, é o exercício constante de uma escuta aberta, comprometida com a alteridade radical que habita cada sujeito — seu inconsciente.


Conforme destaca o Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1967), a atenção flutuante está intrinsecamente ligada à regra fundamental da associação livre, formando com ela um par ético-técnico que define a situação analítica. E como lembra Nasio (2001), essa escuta é também uma prática de afeto: implica deixar-se afetar pelo que se escuta, sem ceder à pressa de compreender ou explicar.


Atenção flutuante, portanto, é mais do que uma técnica — é uma posição subjetiva do analista. Uma escuta que sustenta o inconsciente como campo de verdade e que reconhece, no detalhe mínimo ou no silêncio, a possibilidade de emergência do sujeito do desejo.




Referências


  • Freud, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. ESB, vol. XII.

  • Freud, S. (1904). Sobre a psicoterapia. ESB, vol. VII.

  • Lacan, J. (1998). O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1986). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

  • Roudinesco, É., & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Nasio, J.-D. (2001). Os grandes casos de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

 
 

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