L’Héautontimorouménos, Autossabotagem e o Sofrimento Contemporâneo
- Pedro Kunzler
- 20 de out. de 2024
- 2 min de leitura

Charles Baudelaire foi um poeta boémio e teórico da arte francesa, além de considerado um dos precursores do Simbolismo. Gosto muito da forma como ele retrata a visceralidade humana. É instigante e sombrio ao mesmo tempo. Em um de seus poemas, L’Héautontimorouménos, ele fala de uma figura que se pune, uma imagem potente de autoflagelação emocional. Vou deixar o poema mais abaixo.
Esse tema, que parece distante e poético, está muito presente no nosso cotidiano, especialmente quando olhamos para o sofrimento que as pessoas impoem a elas mesmas. No consultório é comum observar formas sutis de masoquismo psíquico no comportamento de muitos que se autossabotam em busca de validação, reconhecimento e pertencimento.
Para Lacan, o masoquismo psíquico não é apenas o desejo pelo sofrimento, mas uma estratégia inconsciente do sujeito para tentar satisfazer o desejo do outro. A pessoa se coloca em posições de dor e autossabotagem como forma de alcançar algum tipo de reconhecimento ou vínculo, mesmo que isso venha a custar o seu próprio bem-estar. O sujeito, marcado pela falta e a busca constante pelo reconhecimento, acaba se tornando seu próprio carrasco em nome de um gozo que não o satisfaz plenamente.
Se formos analisar, hoje vivemos em uma era em que o sofrimento autoimposto pode ser exacerbado pelas pressões culturais e sociais, sobretudo com as demandas de performance nas redes sociais e no ambiente de trabalho. Estamos constantemente nos expondo ao julgamento e a crítica do outro, buscando validação a qualquer custo, muitas vezes à custa da nossa saúde emocional.
A autossabotagem pode se manifestar em comportamentos como o perfeccionismo, a incapacidade de aceitar erros ou a constante necessidade de se provar valioso em ambientes altamente competitivos. Nos encontramos presos em um ciclo de sofrimento que se alimenta da expectativa irreal de sermos sempre melhores, mais rápidos e mais produtivos.
Reconhecer essas dinâmicas e entender elas sob a lente da psicanálise é o primeiro passo para romper esse ciclo de autoflagelação. É fundamental questionar as formas como nos relacionamos com o outro e o lugar que estamos dispostos a ocupar no desejo alheio.
Buscar acolher nossas imperfeições e reavaliar o papel que a busca por validação desempenha em nossa vida é um movimento de libertação do carrasco que, muitas vezes, carregamos dentro de nós.
L’Héautontimorouménos
(O que se pune a si mesmo)
Deverei eu ser apenas por toda a eternidade
O homem com o coração alegre, mas o espírito torturado?
À minha dor, que se assemelha ao açoite,
Serei eu o que sofre e o que a si mesmo flagela,
A única vítima e o único carrasco?
Eu sou a chaga e a faca!
Eu sou o tapa e a face!
Eu sou os membros e o cossaco,
A vítima e o carrasco!
Desejo, ao menos, um pouco de alívio,
De gozo amargo, num tormento eterno!
Sou eu o que queima e que se purifica,
E meu próprio coração no inferno!



